Prisão é marca de oitava série de depoimentos da Comissão da Verdade da UFBA

Vanice da Mata*

Carlos Sarno, João Henrique Coutinho e Júlio Guedes foram os depoentes da oitava sessão da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade (CMSMV) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O evento aberto aconteceu na tarde de 15 de abril, no auditório da Faculdade de Comunicação (FACOM). Pelo menos três presentes à sessão tiveram a Galeria F como endereço durante vigência do regime civil- militar: Carlos Sarno e João Henrique Coutinho, além do membro da CMSMV, Emiliano José. Este era o setor da Penitenciária Lemos Brito (PLB) onde eram confinados os presos políticos de então. 

João Henrique Coutinho, membro da Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (ORM - POLOP) e aluno do curso de Física entre 1968 e 1976, teve seu curso interrompido durante 4 anos decorrente de sua prisão. Cumpriu pena entre o Rio de Janeiro e Salvador, onde passou pelo Quartel de Amaralina e PLB. Foi vítima de torturas físicas e psicológicas durante os anos de chumbo, e relatou com surpreendente bom humor suas memórias. Destacou episódios em que foi possível entender o modus operandis dos agentes do regime, que simulavam ser quem não eram para plantar escutas junto a investigados, ou mesmo situações onde o acaso andou a seu favor.  Em aeroporto no Rio de Janeiro, numa primeira situação, um avião caiu, desviando a atenção dos agentes da sua pessoa; num outro momento, comemorações de fãs do jogador Tostão, campeão mundial na copa de 1970, permitiram que João se dissolvesse em meio à multidão. Em sua retomada aos estudos, após ter sido solto, o professor de física do ensino médio revela não ter tido qualquer complicação em retornar à UFBA.  “Tive que interromper meus estudos, mas não tive problemas em voltar à universidade para terminar as disciplinas”, relatou o ex-preso político.

Preso político, Júlio Guedes foi levado para a Fazendinha, com a Operação Radar. Foto: Rafael Villanueva 

Outro membro da comunidade de Física da instituição, o professor Júlio Augusto Guedes, também foi preso. Em 1975, os militares estavam decididos a minar força das lideranças políticas adversárias. “A ditatura prendeu em torno de 100 membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) com a Operação Radar, iniciada em 1973, assassinando 20 dirigentes do Partidão”, explicou Emiliano José. Júlio Guedes acredita não ter sido torturado fisicamente por conta de sua pouca idade à época. Em 1972 tinha feito vestibular. “Fui preso com outros companheiros do Instituto, mas eu não era da cúpula do PCB. Encapuzaram a gente e nos levaram para a Polícia Federal e, em seguida, para a ‘fazendinha’ (na cidade de Alagoinhas-BA).” Ali fora montado centro de repressão e tortura do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), ligado aos militares, sob o comando direto do major Carlos Alberto Brilhante Ustra (DOI-CODI/ SP), reforçado por Sérgio Paranhos Fleury, então delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/ SP). “Passei 2 ou 3 dias na ‘fazendinha’ e depois de uns 20 a 30 dias eu fui solto”, relatou o professor. De volta à universidade ele conseguiu se formar em 1976. No mesmo ano em que entrou como professor colaborador (o equivalente a professor substituto, hoje), foi demitido. “Entrei em janeiro e, em dezembro, já estava fora. Procuramos saber o motivo e disseram que eram ordens superiores ligadas à agência de segurança que funcionava dentro da universidade”, denunciou o professor. Em seu relato parabenizou a conduta da direção do Instituto de Física que, mesmo sendo pressionada pelos agentes governamentais, mantinha-se firme em não colaborar com o órgão. Júlio Guedes tornou-se efetivo da UFBA após prestar concurso em dezembro de 1979, quando os ares na instituição de ensino estavam mais leves.

Ilka Bichara ouve relato de Carlos Sarno sobre os anos de chumbo emsua trajetória dentro da UFBA. Foto: Rafael Villanueva

Carlos Sarno nomeou-se “ovelha negra”(sic) do movimento estudantil nos anos de ditadura. Quando secundarista dos colégios estaduais Central e Severino Vieira, foi literalmente caçado pelo alvoroço criado pela peça de sua autoria:  “Aventuras e Desventuras de um Estudante”. Até hoje nunca encenada,  foi diversas vezes ensaiada pelo Grupo Amador de Teatro Estudantil da Bahia – Gateb, do Colégio Central. Sarno fez de 5 palavras a espinha dorsal de sua fala: regurgitar (como sentimento que fica ao falar sobre o período do regime, pois por mais que fale sempre restará muito daquilo dentro de si); ditadura (pela dificuldade de lutar contra um regime antidemocrático amparado pela lei, ordem e força); escracho (vê como necessário que a sociedade tenha consciência de sua parcela de culpa pelos danos causados pelo regime, já que foi por grande parte dela apoiada); caráter (quando reconheceu que a força de sua alma foi talhada por seus pais e avós, momento em que se perguntou “quem diria que o jovem libertário um dia falaria tão bem da instituição familiar?); e, por fim, a palavra  compaixão (que na concepção do ex-estudante de filosofia e jornalismo da UFBA remete às ideias de tomar para si a dor do outro com paixão; desprendimento de brigar pelo que não é seu). Para ele, a palavra ‘compaixão’ tem a entrega e emoção que faltam à palavra ‘solidariedade’. Sarno defendeu que estas concepções “fizeram com que toda uma geração enfrentasse - de uma maneira quase suicida - a luta contra a ditadura”.

Sarno destacou o caráter como o traço que mais preza em si e nos outros. Foto: Rafael Villanueva 

Carlos Sarno foi proibido de estudar em colégio público durante o seu ensino médio, foi expulso do curso livre de teatro da UFBA sem até hoje entender a razão. Mesmo quando secundarista já era perseguido pelos militares, motivo que o levou à Alemanha em 1966, com bolsa da Anistia Internacional. Poderia ter ficado por lá, mas retornou em 1967. Em 1968 passa a cursar Filosofia, mas com Ato Institucional nº 5 viu-se forçado a abandonar a formação. Em São Paulo, em 1970, foi preso pela Operação Bandeirantes (OBAN), núcleo de investigação do exército criado em 1969 para combater organizações de esquerda que, pouco mais tarde, daria origem ao DOI-CODI. “Neste período eu dirigia uma organização que se integraria à luta armada, pois eu era da VAR Palmares” (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares). Sarno explicou que só conseguiu voltar para a universidade depois da anistia (Lei nº6.683/ 1979), quando fez jornalismo, amparado por nova redação da lei dos exames de madureza.  “Sou um caso típico de continuar minha vocação por culpa da ditadura”, declarou o hoje publicitário que nem emprego conseguiu em Salvador depois dos 3 anos que passou na PLB e na Penitenciária Tiradentes (São Paulo).

Compreendendo o homem fundamentalmente como um animal poético, Sarno citou as duas primeiras estrofes do poema “Qualquer que seja a chuva”, do modernista Jorge de Lima. Ao ler os versos, frisou a importância de cada testemunho promovido pela CMSMV como prova de que, no presente, os depoentes se mantêm fiéis à luta nestes tempos em que o consumo é o valor, e que tudo se transforma em mercadoria (inclusive na política, como destacado pelo depoente).

No dia 22 de abril a Comissão Milton Santos de Memória e Verdade dá prosseguimento às oitivas abertas ao público com os depoimentos de Maria Liege Rocha (ex-aluna de Biblioteconomia, ativista do movimento feminino pela Anistia e ex-presidente da União de Mulheres de Salvador), Javier Alfaya (ex-aluno de Arquitetura e ex-presidente da União Nacional dos Estudantes) e Sergio Passarinho (ex-aluno de Arquitetura e ex-presidente da União dos Estudantes da Bahia). Às 14h, no auditório da Faculdade de Comunicação (rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina).

* estagiária de jornalismo da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da Universidade Federal da Bahia.

Assista breve cobertura aqui!