Nona oitiva da Comissão da Verdade da UFBA mostra nova fase do movimento estudantil durante regime

Vanice da Mata*

.           Sérgio Passarinho abriu a tarde de depoimentos na nona oitiva da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade (CMSMV) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que aconteceu no dia 22 de abril. Em sessões abertas ao público, também depuseram nesta sessão a ativista do movimento feminino pela Anistia, Maria Liege Rocha (ex-aluna de Biblioteconomia e também ex-presidente da União de Mulheres de Salvador) e Javier Alfaya, aluno de Arquitetura no período da ditadura civil-militar brasileira, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE).

 

Sérgio Passarinho

Apesar de ter recebido convite para ser da Ação Popular, Sergio optaria por integrar os quadros do PCB, influenciado pela figura do filósofo itabunense Carlos Nelson Coutinho. Estudante, chegou a dirigir o Centro Acadêmico do curso de Arquitetura (CA/ 1965), o Diretório Central dos Estudantes (DCE/ 1966), bem como a União dos Estudantes da Bahia (UEB/ 1967) em eleição direta. Reconhece que o regime de exceção o afetou terminantemente, pois “me forçou a aprofundar a visão político-filosófica que tinha do mundo, com consequências profundas para o meu ser”. Foi preso duas vezes (uma delas no Congresso de Ibiúna/ SP, durante poucos dias), torturado e chegou a passar oito anos exilado. Viu vários de seus contemporâneos serem perseguidos, presos, assassinados, e entende que “tanto professores como os alunos foram surpreendidos pelo aparato militar” que invadiu a Universidade pós março de 1964. “A direção e professores não aplaudiam a nossa atuação, mas davam-nos apoio”, relatou o depoente.

 

Maria Liege Rocha

Ingressou no curso de Biblioteconomia em 1967. Pouco depois seria eleita representante do Centro Acadêmico. No ano posterior, Liege viveu sua primeira prisão também no Congresso de Ibiúna. Dentre os fatos que vivenciou, destaca em 1969 a manifestação contra a cultura norte-americana que unificou estudantes de todas as correntes políticas então existentes. Em meio a várias ações, o ato consistiu numa grande pichação que marcou a cidade de Salvador com os dizeres: “Fora Rockefeller! Abaixo o imperialismo norte-americano!”. No mesmo dia, ela viveria sua segunda prisão, quando a caminho da Escola de Engenharia com duas outras colegas. A terceira veio quando assistia a um espetáculo teatral. “Bemvindo Sequeira estava encenando uma peça considerada subversiva, no Teatro Castro Alves. Na ocasião toda a plateia foi presa e levada para a sede da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia, na praça da Piedade”, contou. Depois desta série de perseguições, entra na clandestinidade em 1970, já participante da Ação Popular. Mesmo antes da vigência do Decreto-Lei 477, ela foi impedida pela UFBA de dar prosseguimento ao seu curso. Em 1975 resolve voltar para Salvador trazendo sua filha Helenira1, então com 2 meses, para seus parentes conhecerem. Não fazia ideia de que, ao deixar sua casa em Recife, teria seu imóvel invadido por policiais que estavam a sua procura, e de que seu então marido seria preso e torturado por 40 dias.

Ilka Bichara acompanha o depoimento da líder feminista Maria Liege Rocha

Em 1976 Liege tentou reabrir sua matrícula, quando concluiu sua formação mesmo sob vigência do “477” - decreto-lei que só viria a ser revogado em outubro de 1978.  Ainda em 1975 criou o Movimento Feminino pela Anistia. No ano de 1978, nascia o Comitê Brasileiro pela Anistia. Maria Liege foi presa outra vez em 1982, no lançamento de um livro sobre a Guerrilha do Araguaia, quando passou 21 dias recolhida. Em episódio recente, em 1996, ao fazer uma segunda via de sua carteira de identidade, o atendente informou não ser possível liberar o seu registro geral, e pediu que fosse falar diretamente com o delegado. Lá chegando, este falou: “a senhora agitou muito na UFBA, hein dona Liege?”.

 

Javier Alfaya

Para Javier Alfaya, é preciso que o movimento estudantil encontre novas formas de falar de política

Líder estudantil nato, Javier foi o único presidente da UNE que não nasceu no Brasil. Ingressou na UFBA em 1975, sendo alvo de inquérito policial no fim de 1981/ início de 1982, movido pela ditadura. Ele não foi preso político ou exilado, mas relatou que muito da política que se fez à época foi através da resistência artística e cultural. “Não havia possibilidade de movimentos sociais, nem tampouco de mobilização de estudantes na década de 1970, depois do AI-5, do Decreto-Lei 477”, e  da Lei Suplicy de Lacerda, reconheceu.  Contudo, em 1974, a UFBA iniciou mobilização para a retomada das eleições diretas para o DCE, “mesmo com o regime militar ainda matando gente até 1976”, disparou o ex-representante estudantil. No ano em que entrou na UFBA, Javier Alfaya seria um dos protagonistas da primeira greve geral pós AI-5 em uma universidade, opondo-se ao regime de jubilamento da casa. Tal movimento conquistou projeção internacional, instituindo-se como marco de retomada das mobilizações estudantis em massa. A partir daí, grandes assembleias e passeatas voltaram a mobilizar contingente significativo da comunidade universitária. 

“A reconstrução da UNE foi em Salvador. E isso não foi condescendência; foi conquista!”, declarou Javier, que reivindica o feito para a capital baiana. “Salvador tornou-se a capital política nacional de resistência”, afirmou.

Amanhã, 29 de abril, as oitivas prosseguem às 14h com os depoimentos de Eliane Quadros (ex-aluna de Biblioteconomia), José Sérgio Gabrielli (ex-aluno de Economia) e de Valdélio Silva (ex-aluno de Ciências Sociais). O evento é aberto e acontece no auditório da Faculdade de Comunicação, à rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina.

1-Nome em homenagem à líder estudantil e militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B) Helenira Rezende, morta na Guerrilha do Araguaia em 1972.

 

 * estagiária de jornalismo da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da Universidade Federal da Bahia.

 

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