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Sétima oitiva da Comissão da Verdade destaca legado cultural do movimento de esquerda pós anos de chumbo

Vanice da Mata*

A data de 1º de abril trouxe ainda mais significado para os depoimentos colhidos naquela tarde pela Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Exatos 50 anos marcavam a distância entre o dia em que o Brasil amanheceu vitimado por um golpe civil-militar que subtraiu garantias constitucionais e feriu direitos humanos, inaugurando, assim, anos cinzentos de ditadura no país. Mas, profundas transformações culturais estariam por vir. Durante a década de 1960, Eduardo Saphira, aluno de Economia, e Eliete Telles, aluna de Direito, viveram os anos do golpe e estavam de volta à universidade para, com familiares, amigos, alunos, professores e funcionários da instituição, compartilhar a história que lhes foi possível escrever desde então.

Quando Eliete Telles ingressou na UFBA, atuava como professora primária e promovia atividades junto ao movimento político da categoria. Pouco depois se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), passando a integrar o Comitê Estudantil Universitário (CEU). Desenvolveu atividades junto ao movimento estudantil, à União dos Estudantes da Bahia (UEB) e ao Centro Popular de Cultura (CPC). Em 31 de março, soube pela cunhada que o movimento militar já estava em curso e, por isso, entendeu que a partir dali só poderia contar consigo. No dia posterior, em 1 de abril de 1964, não conseguiu mais entrar na UFBA: sabia-se alvo de perseguição. Decidiu partir para Ilhéus, onde moravam parentes. Ela não demorou a entender que seria melhor para seus familiares se ficasse ainda mais longe. Passou por cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, onde construiu vida profissional como juíza do trabalho.

Iracy Picanço, membro da Comissão da Verdade, e Eliete Telles, em depoimento | Foto: Rafael Villanueva

Na tarde em que acontecia aquela oitiva era a primeira vez que Eliete punha os pés na UFBA, passados cinquenta anos. Primeira mulher a testemunhar na Comissão da Verdade, foi indiciada em dois inquéritos policiais militares (IPM’s) na década de 1960: o primeiro deles pediu sua prisão preventiva, e tratava dos “universitários comunistas” que atuavam no CEU. Neste processo ela foi excluída por falta de provas, como evidenciou o pedido de habeas corpus impetrado pelo advogado Raul Chaves. “O outro foi por causa de uma denúncia de minhas atividades no CPC. Mas eu era revés.” A esta altura já estaria no sudeste brasileiro, onde era mais fácil se ocultar e conseguir trabalho. Assistiu de longe sua família sofrer retaliações dos militares, bem como colegas ex-alunos da universidade. Em sua experiência, a UFBA colaborou para que pudesse concluir o seu curso superior em outro estado.

Eduardo Saphira vê na cultura a principal contribuição de seus contemporâneos para a cultura brasileira 

Foto: Rafael Villanueva 

Eduardo Saphira estava com 17 anos quando a ditadura se impôs. Ex-aluno do Colégio Militar, recebeu de sua mãe o estímulo para fazer política estudantil. Em 1968 entrou na UFBA para cursar Economia, filiou-se ao PCB e também foi integrante do CEU como secretário político. Safira destaca como a principal contribuição de todo o movimento de esquerda nos anos de chumbo a perspectiva de uma vivência existencial alternativa. “Isso de forma alguma estava na agenda da esquerda, cujas organizações eram revolucionárias no nível político, mas eram conservadoras do ponto de vista comportamental”. Enxerga nas transformações da cultura o principal legado de sua geração para a história do Brasil, responsável por instaurar novos paradigmas decorrentes do questionamento de valores e princípios.

Saphira foi preso algumas vezes por períodos curtos, sem nunca vivenciar tortura física. O maior tempo que passou recolhido foi 15 dias, em consequência de sua participação no Congresso de Ibiúna. O ex-aluno da UFBA avalia como equivocada a escolha daqueles que optaram pela luta armada, mas critica a postura do poder então instituído. “Pessoas que em nome do seu ideal pagaram com o preço da própria vida, mas nada justifica a maneira criminosa como o estado reagiu”, afirmou o economista. Segundo ele, com o decreto 477 foram cassados cerca de 90 estudantes. “Não houve qualquer ato oficial, mas em 1969 fomos avisados na hora de fazer nosso registro que estávamos proibidos de nos matricular.” Em 1971, conseguiu voltar para terminar seu curso.

Outro episódio que fez questão de destacar foi a primeira vez que foi intimado a depor para os militares. “Isso foi em 1966. (Carlos) Sarno era secundarista do Central, e eles fizeram a peça ‘Aventuras e desventuras de um estudante’. A direção da escola proibiu, mas nós resolvemos acolher e encenar no restaurante universitário. A repressão encostou e proibiu a peça. Fomos protestar na frente da Reitoria, no Canela”, relatou Saphira. Deste episódio, uma foto que mostrava seu rosto foi publicada no jornal Tribuna da Imprensa. “Por estar naquela imagem, respondi processo durante quase um ano inteiro”, declarou.  O economista vê o período do regime como de grande retrocesso, pelo qual ainda estamos pagando um alto preço. “Pense no atraso politico que é bloquear o prosseguimento de uma mobilização politica como a vivida pelo Brasil de então”, ponderou. Citando colocações do sociólogo e ex-presidente do país, Fernando Henrique Cardoso, disse: “Não sei por que as forças armadas no Brasil não reconhecem o seu erro e se redimem diante da população brasileira. Falar que eles não têm responsabilidade é insustentável”, constatou Saphira.

Na próxima terça-feira, 15 de abril, a Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da UFBA recebe os depoimentos de Carlos Sarno, João Coutinho e Julio Guedes às 14h, no auditório da Faculdade de Comunicação, situado à Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina. O evento é aberto ao público.

Confira vídeo de cobertura da sétima oitiva

 

* estagiária de jornalismo da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da Universidade Federal da Bahia.