Comissão da Verdade da UFBA ouve ex-alunos sobre o Golpe Militar
O ex-aluno Capinan em depoimento na primeira oitiva | Foto: Rafael Villanueva
*Por Vanice da Mata
Cinquenta anos após o golpe militar de 1964, a Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da Universidade Federal da Bahia (UFBA) começou a ouvir, nesta terça-feira, 04, a comunidade universitária da época a fim de construir um novo capítulo da sua história. Manoel Castro, José Carlos Capinan e Amilcar Baiardi, então alunos da casa no ano de 1964, foram os primeiros a depor junto à Comissão, presidida pelo professor Othon Jambeiro no auditório da Faculdade de Comunicação. “Estamos tomando depoimentos de pessoas que de alguma forma foram perseguidas ou constrangidas, incluindo aí professores, alunos e servidores técnico-administrativos da Universidade que de alguma forma foram atingidos pelo regime militar”, explicou Jambeiro. A Comissão promove nova oitiva na próxima terça-feira, 11, às 14h no mesmo local, mas os nomes dos próximos depoentes ainda não foram divulgados. As atividades são abertas ao público.
O professor Manoel Castro, ex-prefeito indicado de Salvador (1983-1986) e ex-presidente aposentado do Tribunal de Contas do Estado da Bahia foi o primeiro a prestar depoimento à Comissão. No primeiro ano do Regime, ele foi o orador escolhido da turma que se formava em Economia na UFBA. Por causa de seu discurso, saiu de lá preso. “Mas fiquei só algumas horas”, revelou o então estudante, que na época simpatizava com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Atual assessor da presidência da Federação das Indústrias do Estado da Bahia (FIEB), ele relatou que uma das experiências mais assustadoras que vivenciou foi a destruição, por militares, da gráfica que havia montado com os colegas da época. “Naquele dia tínhamos perdido o controle”, reconheceu o ex-aluno, que se orgulha dos dois números da Revista Baiana de Economia, editada pelo grupo que integrava naquele período. “Nesta época se criou muito boato, e por conta disso muitos colegas se mobilizaram para me tirar do país”, revelou Castro.
Othon Jambeiro, presidente da oitiva e Manoel Castro, economista e aluno da UFBA é época do golpe. Foto: Rafael Teixeira
Capinan qualificou como determinante o tempo que viveu na UFBA para ser quem é hoje. À época estudante de Direito, o artista e atual presidente da Amafro (Sociedade Amigos da Cultura Afro-brasileira) reconhece no Centro Popular de Cultura (CPC) o espaço que inspira até hoje o seu ‘estar no mundo’. “A escolha de ser poeta está toda baseada nas experiências desse período. Foi ali que vivi a aproximação entre a política e a cultura (…), mas não a cultura como coadjuvante política, mas como integrante matricial do pensamento político”, afirmou. Ele também chegaria a estudar Teatro e Medicina. Tomou conhecimento da institucionalização do golpe militar ao sair de um cinema, no centro de Salvador. “Tinha ido assistir ‘A Noite’, de Michelangelo Antonioni”, disse. Dali em diante, passou a viver escondido. Na companhia do ator e diretor teatral Harildo Déda, passou por cidades como Mapele, Caculé, Monte Azul, só depois aportando no Rio de Janeiro, momento em que se viu no cenário cultural brasileiro. “Mais tarde, quando voltei à Bahia, não estava mais ligado ao Partido Comunista, mas permaneci entendendo a política e a cultura como a regra e o compasso da minha trajetória”, reconheceu.
Amilcar Baiardi relatou sua fuga do campus de Cruz das Almas após o golpe, além de prisões e tortura sofridas. Foto: Rafael Teixeira
Foi da cidade de Cruz das Almas, onde estudava Agronomia em 1964, que Amilcar Baiardi trouxe a experiência marcante de conseguir fugir pouco antes da invasão do campus pelos militares. Fugiu em uma carroça, camuflado embaixo do feno. “Namorei o PCB, o PCdoB, mas eu era da POLOP (Política Operária). Fui monitorado pelo SNI (Serviço Nacional de Informação), vivi duas sessões de tortura e fui preso seis vezes”, relatou Baiardi, que foi testemunha da disposição de inúmeros estudantes a resistirem à invasão. Contudo, a ordem de dispensar veio com o adendo de que não havia mais qualquer chance de resistência, mesmo com todos os parabelos, garruchas e as mais de duas dezenas de coquetel molotov fabricados por eles, além do ônibus já sequestrado da faculdade. Em sua passagem pelos quartéis, Baiardi recebeu a responsabilidade de ‘arregimentar’ sargentos. No final dos anos 1960, passa a ser professor da UFBA e desde então vem se dedicando a conhecer fatos acontecidos na comunidade entre os anos 1960 e 1970. Amilcar Baiardi foi testemunha de colegas que sofreram duplamente: além de serem militantes, sofriam em decorrência da homofobia.
“É importante estarmos fazendo isso até para apurar melhor esta história”, afirmou Capinan. Para Manoel Castro, “cuidamos muito pouco do passado no sentido de registrar”. Ele diz ter ficado feliz com a iniciativa na Universidade e julga importante “que a gente possa documentar isso para o futuro, porque muita gente não tem a menor ideia com relação a fatos como estes, sobre os quais estamos conversando aqui”.
A Comissão Milton Santos de Memória e Verdade foi criada pelo Conselho Universitário da UFBA em dezembro de 2013 com a função de “inserir na história da UFBA fatos que não são sequer conhecidos pela comunidade acadêmica, que aconteceram entre 31 de março de 1964 até a promulgação da Constituição de 1988. Estamos com uma equipe fazendo levantamento de documentos na Reitoria, nas faculdades, lendo as atas de congregação, além de analisar a correspondência entre diretores com reitores, do Reitor com militares e com órgãos de informação. Tudo isto está aberto para a comissão”, esclareceu Jambeiro. Os trabalhos se estendem durante os próximos seis meses, todas as semanas, com três pessoas sendo contempladas em cada oitiva.
*Estagiária de jornalismo da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da UFBA.